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Foto do escritorThiago Ferreira

SÉRVIA - RELATOS DE UM POVO MACHUCADO


O povo da Sérvia, deste país com tanta história, uma cultura riquíssima e tanta beleza, está machucado. Machucado pela mídia global, que tendenciosamente conta apenas a versão da história que interessa às grandes potências, basicamente retratando os sérvios como criminosos de guerra, os bósnios como as vítimas e os croatas, bom... Os croatas como aqueles cujos criminosos de guerra são postos em liberdade por terem sido condenados "sem provas". Afinal, o que o povo sérvio tem a dizer sobre isso? Neste artigo, apresento a vocês alguns fatos e compartilho um pouco do que escuto por aqui, para que entendam melhor o lado sérvio da história.

No dia 16 de novembro, de uma hora para a outra, o tribunal de Haia foi capaz de absolver os generais croatas Gotovina e Markač de suas penas de, respectivamente, 24 e 18 anos de prisão por crimes de guerra cometidos contra os sérvios da região da Krajina, na Croácia. Como os sérvios reagiram a isso? Nada bem. Esta semana foi repleta de protestos contra o acontecido e, enquanto os croatas comemoraram e receberam seus generais genocidas como heróis, os sérvios não conseguem mais acreditar na justiça internacional. Em declaração oficial, o presidente da Sérvia, Tomislav Nikolić, afirmou que ficou claro que Haia tomou uma decisão política e não uma decisão legal. Disse ainda que, ao invés de contribuir para a estabilidade da região, a liberação dos generais croatas abriu antigas feridas e as pessoas querem saber: quem então é culpado pelos ataques e pela perseguição dos mais de 220 mil sérvios que moravam na região da Krajina (sul da Croácia) durante a operação "Tempestade"? Aparentemente ninguém. Enquanto Croatas e Bósnios seguem em liberdade, sérvios seguem vivendo sua sina de serem culpados por todas as atrocidades dos conflitos na região. Observem a tabela abaixo, que foi publicada em reportagem do jornal Novosti e tirem suas próprias conclusões:

Com o título "Estatísticas dos réus de Haia", esta tabela mostra o seguinte:

  • Ao todo, foram condenados 29 sérvios, 23 croatas, 5 muçulmanos, 1 albanês e 1 macedônio;

  • Quinze sérvios usaram o recurso de apelação, ou seja, solicitaram uma revisão de suas penas, enquanto todos os condenados de outras nacionalidades aparentemente acharam suas penas justas;

  • Ainda estão em julgamento 9 sérvios, 5 croatas e 3 albaneses;

  • Foram liberados 2 sérvios, 7 croatas, 3 muçulmanos, 2 albaneses e 1 macedônio;

  • Dois sérvios e 2 muçulmanos morreram enquanto aguardavam suas sentenças;

  • Sete sérvios e 2 croatas morreram antes de serem transferidos para Haia; e

  • Cinco sérvios e 1 muçulmano morreram em Haia.

Uma pessoa em especial pôde me ajudar muito a desvendar o que aconteceu com os sérvios na Krajina: meu sogro, Nikola, que fugiu de lá exatamente por causa dos ataques dos generais recém-liberados. Nikola nasceu e foi criado num vilarejo próximo à cidade de Knin, chamado Kistanje, na Krajina (região da Croácia de maioria Sérvia). Em seu relato, disse que viu de perto como os soldados a comando de Gotovina e Markač destruíam casas e matavam pessoas sem nenhuma razão, inclusive conhecidos dele. Em um certo momento, os sérvios receberam um aviso de que deveriam deixar a Croácia. Nikola tinha gasolina, mas não tinha carro e um amigo dele tinha carro, mas não tinha gasolina, então eles se juntaram para fugir juntos. O problema é que os dois filhos desse amigo dele estavam longe e o amigo quis esperá-los. Mas o pânico logo tomou conta da cidade, as pessoas começaram a fugir desesperadamente e todos gritando para irem embora o mais rápido possível para não morrerem! O amigo foi obrigado a deixar os filhos para trás sem saber se ia revê-los... Fugiram então de carro para a Bósnia com a minha sogra e minha namorada (ainda bebê) levando apenas uma mala com alguns pertences. Ele tem uma foto que mostra esta mala em cima de um pedaço de lona que forrava o chão quando tinham que dormir no meio do mato (não obtive autorização para publicar essa foto). Horas depois de sua partida, a cidade foi bombardeada pelos croatas. Ao chegar na Bósnia, dormiram na casa de outro amigo enquanto esperaram durante 7 dias até acharem lugares vagos no ônibus de Sarajevo a Belgrado - os sérvios estavam fugindo em massa com medo.

Há quatro anos, ele esteve lá novamente para ver como ficou a sua cidade depois de todo o conflito e para visitar conhecidos que resistiram e persistem em morar lá, apesar de ainda hoje ser considerada uma região perigosa para sérvios. Na primeira imagem abaixo, vemos a escola onde Nikola estudou completamente abandonada, com uma verdadeira floresta crescendo dentro dela. Na segunda, vemos à esquerda uma pequena capela, onde os poucos croatas que habitavam a cidade rezavam na época em que Nikola morava lá; à direita está uma grande igreja católica construída recentemente como se estivesse passando a mensagem "Esta terra é agora croata. Sérvios não são bem-vindos". Finalmente, na terceira, vemos uma antiga casa de pedra destruída. Ao ser perguntado se sente saudade, Nikola disse que prefere mil Kistanje a uma Belgrado, mas que não volta porque simplesmente não tem mais nada lá, está tudo destruído e abandonado.

É interessante saberem que antes de voltar a morar em Kistanje na época dos ataques croatas, Nikola morou um tempo em Sarajevo, onde conheceu sua mulher (minha sogra) e teve uma filha (minha namorada). Naturalmente, a vida dos sérvios lá também não foi fácil. Muito se ouve falar que os sérvios cercaram os bósnios em Sarajevo, mas poucos sabem que, do outro lado do cerco sérvio, havia mais bósnios! Segundo o relato de Nikola, era enlouquecedor acordar todo dia com medo dos muçulmanos, correndo risco de levar um tiro a qualquer momento, por isso ele deu um jeito de fugir de volta para sua cidade natal. Em Sarajevo ele tirou a foto mais chocante (que também não tenho autorização para publicar), na qual estão ele segurando uma metralhadora, a mulher dele e a filha recém-nascida - ele disse que na época todos tinham que andar armados por questões de sobrevivência e conta histórias de ofensivas muçulmanas a 200 metros da casa dele. Disse ser lamentável ele ter passado por isso, foi uma época horrível.

Por fim, não estou querendo apontar o dedo nem livrar a cara de ninguém, espero que não me entendam mal. A minha intenção é mostrar o lado da história que não se acha em qualquer lugar por aí. E relatos são o que não faltam: na semana passada mesmo, conheci uma senhora no grupo de veteranos que dança kolo no Kalemegdan que me disse que fugiu de Sarajevo depois de terem matado 12 membros de sua família! Portanto, entendam que os sérvios sofreram tanto quanto os croatas, os bósnios e todos os participantes das guerras em geral. A diferença é que a Croácia e a Bósnia foram mais espertas e ganharam a atenção da mídia com jogadas calculadas e parcerias compradas para que suas versões da história se tornassem verdades absolutas, enquanto a Sérvia ficou quieta observando e esperando que a verdade viesse à tona. É exatamente sobre isso que fala o documentário "Iugoslávia - a guerra evitável", que vocês podem ver abaixo. Hoje, os sérvios se sentem mais injustiçados do que nunca e, como consequência, há grandes chances de esquecerem de vez qualquer tipo de parceria com a União Europeia.

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